segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Xixi em pé, afirmação da masculinidade e repressão feminina: 2a parte

Imagem: sindepolpb.com.br
Na primeira parte deste texto estávamos conversando sobre como meninos são incentivados a fazerem xixi na rua - ou pelo menos isso é liberado a eles - enquanto às meninas é dada uma outra forma de educação, repressora da sexualidade feminina.

Conversamos também sobre como essa conduta permanece depois de crescidos esses meninos, e mesmo sendo considerado um crime previsto em lei, com notícias recentes de pessoas presas por fazerem xixi na rua, a prática prossegue bastante comum e, segundo o próprio juiz que julgou um caso do tipo, a conduta é "socialmente correta".

Outra dimensão dessa conduta, um pouco mais íntima mas nem por isso menos sagrada para os rapazes, é a relação entre poder mijar em pé e a afirmação da masculinidade.

Não havia me questionado ainda sobre isso até que fui morar na residência estudantil na universidade. Os apartamentos eram mistos - ainda são na verdade - e comecei a achar absurdo que os caras sujassem o sanitário sendo que nós, meninas, teríamos de nos sentar ali, o que, a meu ver, além de nojento e desrespeitoso para conosco ainda poderia provocar doenças tais como infecção urinária, afinal, a vagina é um sexo aberto, muito mais propício à entrada de micróbios e outros seres nocivos à saúde do que o pênis.

Imagem de www.fotolog.com.br
Pensando nisso e preocupada com minha filhotinha que acabara de sair do piniquinho e começaria a usar o sanitário falei com o estudante que iria morar comigo no apartamento se ele poderia fazer xixi sentado no nosso banheiro. Ele, por sua vez, ficou indignado, dizendo que isso era um absurdo e, para argumentar em cima da ilegitimidade do meu pedido, disse que nunca sujava o vaso quando fazia xixi, que tinha uma boa mira e até contou uma historinha de como a avó dele tinha ensinado um método perfeito para enxugar o pipi depois do xixi de forma a não vazar nem uma gotinha.

Eu sabia que não poderia obrigar ninguém a acatar minha solicitação, mas senti que tinha feito minha parte, e depois, era questão da consciência de cada um. Aliás, pensava, se o cara quisesse poderia simplesmente dizer que tudo bem, que faria xixi sentado, afinal, a porta estaria fechada, ninguém estaria vendo e ele poderia simplesmente fazer seu mijo inocente tranqüilamente de pé.

Mas nenhum homem que conheci e que não concordava com minha tese mentia. Os que acataram aceitaram numa boa e os que não concordavam simplesmente diziam que eu estava louca ou inventavam uma historinha para justificar sua atitude e ponto. O interessante é que essa dignidade demonstrada, a meu ver, não estava relacionada ao fato de não mentirem e sim na suposta dignidade da manutenção de seu status de homem, em sua masculinidade, no 'direito sagrado' de mijar em pé.

Aliás, há certos indicativos que colocam o fazer xixi em pé como algo meio superior da referência à masculinidade, tanto que há expressões tais como “vai começar a fazer xixi sentado?” ou “só falta fazer xixi sentado” para falar de alguém que é gay ou com comportamentos considerados pouco adequados ao padrão socialmente aceito como masculino.

Imagem: http://www.wordpress.tokyotimes.org
Contudo, para além dos embates entre mulheres e homens ao tratar dessa questão há que se considerar a pauta da higiene. Nesse sentido, encontrei desde manuais de instruções que ensinam aos rapazes etapas para que seu xixi não se desvie do sanitário até o Angel Lap Pillow, espécie de sapatinho criado pelos japoneses para que o sujeito fique ajoelhado próximo ao sanitário, também evitando que o xixi suje o vaso e o chão, tudo para tentar conciliar uma higiene básica à suposta necessidade masculina de ficar em pé para urinar ou a dignidade de, pelo menos, não ter de fazer xixi sentado.

De qualquer forma, tenho observado que rapazes e homens que não se sentem tão pressionados por essa necessidade de afirmação heterossexual ou da famigerada masculinidade aceitam como algo tranqüilo a proposta de fazer xixi sentado no banheiro de sua casa. Em geral são homens mais jovens e mais abertos à idéia de que sua masculinidade não está atrelada a padrões rígidos do que é ser homem e, portanto, em sua intimidade não precisam se preocupar como se estivessem sendo observados o tempo todo para provar essa suposta macheza.

Outra coisa importante é, enquanto mães, nos refletirmos sobre como oferecer uma educação mais libertária para os meninos, desprendendo-os de símbolos como esses e outros que atrelam a masculinidade a padrões tão estreitos conceitualmente bem como a essa rigidez do não sentir, do não chorar, da não sensibilidade, da não delicadeza. Da mesma forma, cabe repensar a educação para as meninas, refletindo sobre esse formato ainda tão repressor se comparamos pequenas atitudes que diferenciam o tratamento dado a meninos e meninas numa mesma situação, como a exemplificada na primeira parte desse texto, em que meninos são livres para fazerem xixi em lugares públicos.

Quando comecei esse texto o fiz para ver se conseguia amenizar ou pelo menos elaborar um pouco minha indignação justamente sobre essa situação de ver caras mijando onde bem entendem.

Pois bem, dias desses estava indo pegar o Chiquinho, meu palinho popular 1.0, estacionado em frente a uma agência bancária. Logo ao atravessar a rua notei dois sujeitos indo em direção ao lugar onde ele estava e da maneira como foram mexendo nas bermudas imaginei que iam fazer xixi ali. Um deles, inclusive, foi bem na direção do Chiquinho, o que me fez perceber com desgosto que eu ia chegar para abrir o carro e o cara estaria ali, ao meu lado com o pinto de fora atirando urina pra todo lado.

Cheguei perto do carro e, não bastasse o cara estar ali nessa atitude indigna, observei que por todo o pneu do Chiquinho escorria mijo. Fiquei tão incomodada que sem avaliar aquele receio que normalmente temos nos grandes centros urbanos - e por isso muitas vezes não reclamamos, receosos de pessoas encrenqueiras ou loucas ou, pior, ambos - falei num tom de repreensão meio puxão de orelha meio 'não estou acreditando': “porra meu, mas no pneu do carro?” E ele, que provavelmente não pensou que fiquei cogitando se haveria alguma relação entre homens e cachorros, xixis em pneus e demarcação de território, respondeu meio envergonhado “desculpa fia”.


Sites e artigos interessantes que encontrei sobre o assunto:


domingo, 30 de janeiro de 2011

Xixi na rua, masculinidade e repressão feminina: 1a parte

Imagem extraída de http://artur-moritz.blogspot.com/
É possível que o título desse texto tenha levado vocês a pensarem porque decidi falar de algo aparentemente tão pouco garboso e talvez até sem nexo em lugar do post que eu  havia prometido sobre minha rápida incursão em Buenos Aires. Mas se você acompanha o blog está acostumado com esses descaminhos curiosos e, além disso, minhas anotações e reflexões na Argentina virão, assim como as histórias que estou devendo ainda sobre a Fazenda Pedra Negra.

A primeira provocação aqui diz respeito ao termo xixi para designar a conhecida urina. Quando pedi opinião ao meu querido, ele que é autenticamente mente aberta questionou o uso do termo, que indica certa infantilidade ou, pelo menos, pouca masculinidade. Mas o fato é que acho urina uma palavra feiona, que fica melhor em contextos laboriatológicos e hospitalares, então vou insistir no uso de xixi mesmo.

De qualquer forma, o que quero tratar no texto são algumas relações que vejo entre o ato de fazer xixi (ou mijar, como preferem os socialmente másculos de plantão), o universo masculino e a repressão feminina no contexto de uma educação essencialmente machista.

Vejam, não me considero uma pessoa careta nem com excessivos melindres a atitudes que, em geral, incomodam mulheres mais sensíveis. Pelo contrário, minha acidez me ajuda a compreender e aceitar, sem problemas, brincadeiras escatológicas e mesmo piadas porquinhas até na hora de comer. Contudo, não tolero rapazes e homens feitos mijando em paredes, árvores, cantos, escadarias e portas de lojas, ou seja, em locais públicos, o que considero uma enorme falta de respeito e, mesmo vendo isso muito mais do que acharia aceitável para uma sociedade que se pensa civilizada, não consigo me acostumar.

Lembro que desde bem moça tal façanha de mal gosto me incomodava bastante e eu dizia as minhas amigas adolescentes da época que, ao invés de passarmos vexadas quando nos deparávamos com uma dessas cenas, deveríamos, isso sim,  deixar os caras vexados, afinal, eles é que estavam sendo inoportunos. Minha proposta era que nos aproximássemos em várias meninas e ficássemos encarando o sujeito e seu pinto com olhar firme. Pensava que até poderíamos fazer um comentário do tipo “e nem é tudo isso”, mas depois, com a maturidade, percebi que essa última parte do meu plano era machista e a abortei. De toda forma, não consegui nunca adeptas para me acompanhar nessa empreitada e o máximo que consigo sozinha é fazer insignificantes comentários repreensivos em altura suficiente para que os malas mal-educados ouçam.

Uma questão que me provoca nessa conduta de mijar publicamente é sua relação com a representação de masculinidade na nossa sociedade e os valores transmitidos pela educação destinada a formar homens e mulheres.

Observe-se que desde pequeninos os garotos fazem xixi em qualquer lugar com a anuência de suas mães. (Digo mães porque embora eu defenda que os pais deveriam ser tão responsáveis e tão cobrados pela educação dos filhos quanto as mães, esse meu mundo ideal ainda está por vir). Diferente deles, as meninas, mesmo pequenas, tem de esperar até chegar em casa ou a um local apropriado para usar o banheiro.

Nesse ponto, os mais simplistas poderiam dizer que isso ocorre porque, evidentemente, é muito mais fácil para os meninos tirarem o pintinho de dentro da roupa e fazerem xixi mirando em algo do que para as meninas se abaixarem e fazerem xixi escorrendo pelas pernas. Mas discordo que seja somente uma questão de viabilidade aí implícita. Pelo contrário, penso que essa suposta viabilidade é mais um dos mecanismos utilizados para reprimir as meninas em suas vontades, afinal, crianças são crianças e se a menina pode esperar até chegar em casa, com o menino não precisaria ser diferente.

Giovanna Antonelli com seu filho em frente a restaurante no Rio.
Ou seja, se não é o "estar muito apertado" ou a possibilidade de fazer xixi na roupa o motivo principal, se a vontade é a mesma para meninos e meninas, o que mais justificaria as meninas terem de se segurar enquanto meninos podem fazer xixi na rua sem precisar reprimir sua vontade senão uma educação machista e repressora de mulheres?

Outro indicativo dessa repressão às meninas contraposta a uma educação que deixa os meninos muito à vontade é o fato de que aos meninos é permitido mostrar o pipi: ele pode tirá-lo de dentro da roupa e fazer xixi a céu aberto e dificilmente sofrerá uma reprimenda por isso ou verá alguém indignado com sua atitude como algo escandaloso. Por outro lado, se uma menina abaixasse a roupa e mostrasse sua vagininha da forma ostensiva como os garotos podem mostrar seus pipis publicamente, duvido muito que ela não seria reprimida com palavras de ordem ou pelo menos vestida imediatamente para corrigir a atitude fora de padrão.

Assim, desde cedo os meninos são educados em meio a essa simbologia de liberdade  em relação à sua sexualidade, enquanto as meninas tem o não como principal indicativo:  um não que proíbe tanto aliviar sua vontade quanto mostrar seu sexo. E vejam, não defendo que as meninas tenham esse direito, não se trata disso mas de refletir sobre elementos que, a meu ver, representam parte dessa educação repressora de mulheres.

O fato é que muitos caras já adultos parecem não ver inadequação nessa atitude e continuam a mijar por aí a torto e a direito. Talvez por terem sido educados dessa forma é que muitos sujeitos se acham no direito de  sair mostrando seus pintos em plena luz do dia, sentindo-se autorizados a mijar em qualquer lugar. Encontrei até uma defesa de que "mijar no muro é um direito sagrado do homem". Tudo bem que o autor defende que esse muro estaria numa "rua deserta" onde não há "ninguém para olhar", mas não é exatamente o que acontece na vida real.

Aparentemente, outro direito considerado sagrado é o de mijar em pé, estreitamente relacionado - para muitos homens - à afirmação da famigerada masculinidade. Tratarei disso na segunda parte desse texto.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Cangando uns grilos

Foto: Alex Reisdorfer. Extraída de http://br.olhares.com
Para quem não sabe, assim como eu não sabia, canga é o objeto usado para juntar dois bois lado a lado para puxar o carro de boi, servir de meio de transporte de pessoas ou de carga em localidades rurais.

A palavra também pode ser usada como verbo e, segundo o que ouvi aqui em Três Pontas, Minas Gerais, quando uma coisa ou uma pessoa dá muito certo com outra, além de dizer que combinam eles também dizem que "é bom de cangar". Isso porque para cangar um boi com outro tem uma série de observações a serem feitas, por exemplo, se os bois têm o mesmo temperamento, a mesma altura, se andam em ritmo parecido e por aí vai. Soube inclusive que há pessoas que só de ver um boi tem o dom de observar esses detalhes e sabem dizer se o boi é de canga.

Pois bem,  mais um delicioso almoço terminado aqui na Fazenda Pedra Negra e, novamente, ficamos à mesa conversando, enquanto esperamos a sobremesa. Mas a conversa continua ainda depois e fico a cada dia mais impressionada com a aura que parece envolver a Fazenda e aproximar as pessoas tão naturalmente porque, desde que cheguei, não houve um café, um almoço ou um jantar em que não tenhamos ficado numa prosa com um sem fim de histórias tão deliciosas quanto tudo o que é servido  e vivido aqui.

Hóspedes, familiares e moradores da Pedra Negra, é como se bastasse se sentar à mesa e num instante estão já a contar histórias e falar de coisas as mais curiosas, engraçadas, ricamente interessantes da cultura local, me deixando com a sensação de que a doideira do meu cotidiano urbano é parte de um outro Brasil e não deveria mais ser parte de mim.

Foi assim que surgiu minha idéia para esse texto, porque hoje após o almoço uma das moradoras da Fazenda contou que tinha chamado a Isaura para tomar café, perguntando se ela estava ocupada e ela respondeu que não, que estava cangando uns grilos.

Vista de uma das casinhas de colonos ao redor da Fazenda.
Foto: Walquíria Molina
Antes de me cobrarem porque eu não disse quem é a Isaura, ela é a adorável dona do hotel e, junto com seu adorável Gustavo são responsáveis pela Fazenda Pedra Negra. Mas, sobretudo, acho que é ela quem dá esse jeito para a Fazenda que torna possível as coisas acontecerem da forma incrível como acontecem aqui, além de você sentir como se estivesse em sua casa mesmo.

Bom, desde o dia que conheci a Pedra Negra que estou ouvindo histórias* e proseando por demais e quero muito dividir um pouco de todos esses causos com vocês.

Como hoje fiquei o dia todo cangando grilos para já ir me despedindo da Fazenda com calma - embora não sem dor - resolvi fazer esse ensaio para vocês terem uma prévia das histórias* que vem por aí e eu, para já ir matando as saudades que chegaram antes mesmo de eu ter batido cancela da Pedra Negra.


*Publicadas na Página "Para quem gosta de causos".