Estava às voltas com um texto que pretendo escrever sobre o estudante morto no campus da USP semana passada quando fui atingida por uma história recente de traição. A questão me incomodou de tal forma e me deixou tão impactada que não pude conter meu desejo de passar para a escrita, imediatamente, algumas linhas sobre isso. Como muita coisa nesse blog sai fora de hora mesmo, seguramente ainda volto a minha reflexão sobre a morte do estudante Samuel de Souza.
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Cena do filme Edukators, Alemanha, 2004. |
Pois bem, como eu dizia, uma história recente de traição me fez pensar um pouco sobre o porquê sofremos tanto quando nos deparamos, muitas vezes não sem surpresa, com a traição de alguém que amamos.
Seria devido à forma como nos relacionamos, ou seja, dentro da tão clássica relação de exclusividade, que quando quebrada nos traz esse sentimento de que fomos traídos? Seria a sensação de que a outra pessoa é melhor que nós, essa sensação vergonhosa de baixa estima? Seria orgulho ferido, por nos sentirmos insuficientes em tudo o que pretendemos contemplar na satisfação pessoal, amorosa e sexual da pessoa com quem estamos? Seria a sensação besta de que perdemos o jogo para alguém?
Realmente não sei, talvez não seja nada disso, sejam outras coisas ou seja um pouco de tudo isso ao mesmo tempo, mas o fato é que tanto homens quanto mulheres ficamos atordoados com uma traição, independente de como consigamos lidar com a dor que isso causa, o fato é que traição causa dor.
O que me impressiona ao pensar nessa questão é como realmente somos complicados porque me parece que, após milhares de anos nos relacionando amorosamente, ainda não conseguimos abrir mão de certos padrões que sabemos não funcionar muito bem. É assim que insistimos, por exemplo, nos pactos de exclusividade eternos, como se fosse possível prever para todo o sempre que jamais nos interessaremos por outras pessoas ao longo de nossas vidas, tão pouco intensas no mundo contemporâneo, não é mesmo?
Vejam, não quero parecer leviana, como se fosse impossível dedicar amor e fidelidade a apenas uma pessoa, mas falo da insanidade existente em muitos relacionamentos amorosos, nos quais a título dessa pretensa exclusividade e fidelidade tenta-se controlar não apenas os atos e a liberdade do outro como também as amizades que pode (ou não) ter, o estilo de vida, em suma, grande parte de suas escolhas, num total desrespeito à privacidade e à individualidade, elementos centrais de nossa dignidade enquanto sujeitos. O mais triste é que, segundo uma grande terapeuta que conheço, esse tipo de descontrole emocional em um relacionamento é bem mais comum do que se imagina para uma sociedade tão democrática, moderna e civilizada quanto a nossa.
Mas suponhamos que o relacionamento seja saudável, que os dois indivíduos envolvidos se respeitam enquanto sujeitos em sua individualidade e liberdade, que escolheram conscientemente estar juntos (sim, porque há pessoas que parecem estar obrigadas a ficar com alguém, como se isso garantisse a felicidade dos filhos, o término das contas e das dívidas ou os bens materiais fossem razão suficiente para abrir mão da própria felicidade) - e que, na consciência dessa escolha e da implicação do que chamo de pacto de exclusividade, entendem que se amam.
Talvez minha impactação com a história que eu soube advenha exatamente do fato de que nada disso garante que a traição não aconteça e, talvez também por isso, a dor e o atordoamento sejam tamanhos. Porque, no fundo, ninguém está preparado para sentir-se enganado, que é basicamente o sentimento gerado por uma traição quando estamos numa relação como a que acabei de citar.
E, nesse sentido, creio que a relação entre traição e sentimento de ter sido enganado pode ser transposta para a maior parte dos relacionamentos, seja de amor, de amizade, fraternal entre pais e filhos, irmãos etc. Ninguém gosta de ser enganado, é ruim sentir, ainda não sendo a verdade, que talvez não sejamos tão importantes quanto gostaríamos para alguém e, ainda que dificilmente seja essa a razão principal de uma traição, é impossível para um espírito magoado compreender o que leva alguém que se ama a cometer um ato de enganação.
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Cena do filme Edukators, Alemanha, 2004. |
A solução seria o diálogo franco e aberto? Dizer ao outro, no caso de seu amor, que se está interessado numa terceira pessoa, ou que se fará uma escolha não muito aceita para o padrão de educação recebida, no caso dos pais, e assim por diante? A verdade é que, na maior parte dos casos, esse caminho também parece pouco viável. Fico pensando se quando decidi viver minha vida sexual livremente tivesse comunicado aos meus pais o quanto isso talvez tivesse chocado mais do que quando fiquei grávida e optei por não me casar.
Da mesma forma, vejo o quão difícil e trabalhoso é construir um relacionamento aberto e já presenciei casais genuinamente poliamorísticos com crises por causa de uma terceira pessoa que entrou no relacionamento provocando o sentimento de traição.
De fato, parece muito complicado equacionar amor e liberdade quando penso o quanto de possessividade, insegurança e egoísmo nos constituem enquanto seres humanos complexos e incoerentes na nossa forma de amar e manifestar o amor.
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Cena do filme Edukators, Alemanha, 2004. |
Se você já leu outros textos deste blog talvez tenha reparado que sempre tento finalizar minhas reflexões com um tipo de 'fechamento'. Pensei bastante e não consegui encontrar nada que fechasse de maneira satisfatória as questões que me trouxeram a esse texto. Talvez seja porque a experiência da dor de uma traição é algo tão particular quanto as possíveis razões que, em nossa dor, podemos especular tentando compreender essa traição. Confesso que jamais consegui compreender bem as traições que sofri ou as que cometi, mas sei que a dor, tanto provocada quanto sentida, só se esvaiu quando foi possível (re)colocar em seu lugar sentimentos de respeito e de amizade.