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terça-feira, 30 de novembro de 2010

Monteiro Lobato, racismo e outras reflexões em meio ao Mês da Consciência Negra

Imagem extraída de www.lidebrasil.com.br
É bem possível que vocês nem desconfiem, mas tentei começar a escrever este texto lá pelo início do mês, quando pipocavam discussões sobre a polêmica em torno do suposto veto ao livro de Monteiro Lobato “Caçadas de Pedrinho” nas escolas públicas.

Contudo,  aparentemente, a discussão esfriou com o indicativo dado pelo Ministro da Educação, Fernando Haddad, de inserir notas explicativas em substituição ao veto, o Dia da Consciência Negra se foi e eu decidi, ainda que nos 48 minutos do segundo tempo, refletir aqui sobre algumas das tantas questões que me chamam a atenção quando se fala em temática racial no Brasil.

Logo que surgiu a polêmica, ouvi na Faculdade de Educação comentários indignados sobre a notícia de que o MEC queria tirar Monteiro Lobato das escolas públicas devido à discussão sobre racismo na obra “Caçadas de Pedrinho”. A discussão que se seguiu entre alguns dos pós-graduandos não me surpreendeu, girando em torno do caráter clássico da obra do autor, de estar situada em outro contexto e de Lobato ser um escritor reconhecido e renomado, além de tantos outros argumentos em defesa de sua obra, afinal, é mesmo indiscutível  a contribuição do escritor para a literatura brasileira em geral e a infantil em particular.

Imagem extraída de www.nacaomestica.org
Ademais, me parece que muitos acadêmicos da área de Língua Portuguesa e Literatura estão mais interessados em reafirmar o caráter clássico, sem dúvida inquestionável de algumas obras, do que debater o como esse caráter clássico está sendo (ou não) apreendido ao longo das décadas pelas diferentes gerações de estudantes.

Bem, se há estudiosos que se eximem do debate, o que esperar do sem número de palpitadores, opinadores e opinantes, brasileiros formados na chamada “democracia racial”? Numa vista rápida d’olhos pelas notícias é possível perceber um pouco da influência dessa formação, quando se vê não apenas a unanimidade do discurso em torno da importância de Lobato - repito, inquestionável - mas sobretudo do esvaziamento do debate que realmente interessa:

Considerando-se o teor racista de expressões adotadas em “Caçadas de Pedrinho”, como trabalhar criticamente a obra, de forma a evitar, por exemplo, “interpretações negativas” e o “reforço de preconceitos”. (Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), p.4 e p.5).

Bem, aí começa a polêmica discussão porque, primeiramente, a título de defesa do contexto e da forma, muitos não consideram que o conteúdo de “Caçadas” seja racista, a partir de justificativas as mais variadas, que vão desde as bem fundamentadas e coerentes àquelas mais rasas.

Entre as primeiras  estão as que se baseiam na comparação entre as personagens, na intencionalidade de Lobato, no fato de que a “descrição social obedece ao modelo vigente à época” ou no argumento sobre a valorização das personagens negras do livro, visto que Tia Nastácia é uma “divindade criadora” ou ainda que “Tia Nastácia e Tio Barnabé são criações maravilhosas (...) ricas de conhecimentos, doçura e sabedoria”, constituindo-se, portanto, em “personagens negras (...) generosas e lindas”.

Entre as justificativas rasas e irrefletidas estão as do próprio Ministro Haddad, que simplesmente declara "Pessoalmente, não vejo racismo" ou as de um sujeito imbuído pelo suposto saber legitimado por uma série de titulações, um tal de Jorge Maranhão, responsável pelo site A voz do cidadão (vejam a ironia!), que, não contente em achar que na obra não tem racismo, declara irresponsavelmente que “não existe racismo no Brasil”.

Imagem extraída de www.prosaepolitica.com.br
Não bastasse a desqualificação do racismo das expressões de Lobato, o foco da discussão afastou-se ainda mais da questão central do parecer, propositalmente ou por descuido de leitura, por conta do que foi considerado veto e/ou censura à obra, o que causou compreensível furor ao nosso senso democrático, contribuindo bastante para minimizar o exercício de reflexão sobre como poderíamos repensar o uso de um livro importante, mas com expressões pesadas e ofensivas à identidade de crianças negras em formação.

O excelente artigo escrito por Idelber Avelar, mestre em literatura brasileira, além de uma exposição interessante sobre a falsa polêmica em torno do suposto veto, traz para o debate o cerne da questão ao afirmar que a linguagem racista utilizada por Lobato “não vem de um ‘vilão’ da história depois punido, mas é sancionada pela obra, posto que enunciada por Emília, a personagem querida, central, convidativa à identificação”. Nesse sentido, defende que se trata de “um problema nada simples para o educador” lidar com essa situação numa sala de aula com crianças com média de 10, 11 anos e convida os que minimizam a questão a montar e expor um plano de aula a partir disso.

Ora, não é demais lembrar que, ainda que Lobato não tivesse intenção de inferiorizar o negro, para o contexto atual - felizmente - as expressões utilizadas por ele são racistas sim. O problema é que como o debate ficou centrado na polêmica sobre a anti-democracia da censura a Lobato, foram relegadas a segundo plano as discussões sobre como trabalhar esse conteúdo em sala de aula, fundamentais se considerarmos todos os problemas inerentes à educação pública atual e especialmente se se pretende contemplar a multirracialidade na formação de crianças e jovens no ensino básico. Estaria realmente o professor preparado para essa tarefa? E não sejamos ingênuos, trata-se de tarefa muito mais ampla e complexa do que contextualizar historicamente a obra e seu autor.

Posto isso, não considero, contudo, que a obra deve ser banida, como declararam alguns estudiosos militantes do Movimento Negro, porque a meu ver seria uma ação desnecessariamente radical e, além de não gostar de radicalismos extremos de nenhum tipo, não considero que ajudem muito no objetivo a que se propõem, seja ele qual for. Penso que é mais profícuo suscitar e aprofundar o debate em torno, por exemplo, do quanto avançamos em termos de leis e padrões politicamente corretos para um tratamento respeitoso mas, ao mesmo tempo, o quanto o preconceito e o racismo ainda permeiam as relações tanto de forma sutil quanto de maneira escancarada na nossa sociedade.

Haja visto, por exemplo, o desconforto ainda presente no discurso de muitos brasileiros para dizer que alguém é negro, como se isso fosse uma ofensa à pessoa. Observe-se que não é incomum a utilização da terminologia “moreno” para denominar inclusive negros de pele escura, o que me leva sempre a questionar a quê a pessoa está se referindo quando utiliza este termo na minha presença porque, de fato, não compreendo bem o que significa ser “moreno” no Brasil.

Imagem extraída de prosamagica.blogspot.com
Sem dúvida, não será difícil encontrar aqueles que acham não há nada de preconceito embutido no uso do termo “moreno”, afinal, temos várias nuances de cores de pele no Brasil, o que é verdade, mas será mero preciosismo discutir questões como essa? Será que todo mundo que se identifica ou identifica um outro como “moreno” está pensando na nossa tez multicor como algo plural e positivo? Seria mera tendência da moda a ascensão desmedida do uso da chapinha e da escova definitiva para “facilitar a vida” da mulher moderna ou isso reflete a não valorização de nossos cabelos Black porque a sociedade cada vez mais impõe um padrão de embranquecimento forçado? Será mera coincidência que propagandas de marcas caras de carros nunca tem um negro como potencial consumidor ou que as novelas da Rede Globo parecem ter elenco composto em grande parte pela população sueca?

Perdoem a minha falta de delicadeza, mas acho um pouco demais que pessoas que se pensam informadas e conectadas ao mundo não tenham a decência, o cuidado e, principalmente, o interesse em ler um pouco das informações e discussões contidas nos tantos estudos sérios já feitos sobre a temática racial no Brasil antes de sair por aí escrevendo qualquer coisa a respeito de um documento que buscava, especialmente, fazer valer a Resolução que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (CNE/CP nº 1/2004) - Resolução inclusive ainda não adotada e até mesmo desconhecida em muitas instituições públicas de ensino básico.

É bem verdade que nossa identidade como brasileiros está permeada por tantas nuances de cores, de reflexões, de história e de conflitos que, às vezes, fica difícil nos posicionarmos com segurança indubitável sobre quem realmente somos. Alguns não querem se declarar negros porque defendem conscientemente sua mestiçagem e, por conseguinte, não querem negar sua parte branca constituinte. Outros não querem se declarar mestiços pela força do contexto histórico em que o ser mestiço se aproximaria do ideal branco de ser. Por outro lado, não querer declarar sua cor é uma afronta porque seria não se afirmar ou se identificar com nenhum parâmetro conceitual instituído.

A meu ver, o grande problema está no fato de não discutirmos todas essas questões assumindo a complexidade do que representa a identidade de ser brasileiro. Vejam meu caso, brasileira como a maioria de nós, descendente desse Brasil negro, branco e mestiço: socialmente sou considerada branca, então não posso dizer que sou negra ou mestiça porque pareceria demagogia ou qualquer coisa que o valha. Contudo, além da ascendência negra, também não me penso branca considerando-se toda a discussão em torno do que representa o “ideal branco-europeu” no processo de construção de identidade do brasileiro. Pois bem, se nessa sociedade é um contra-senso eu dizer que sou negra, no meu entendimento, branca também não sou. E como não existe uma categoria criada na qual eu possa me encaixar, inventei uma na qual me sinto confortável em me assumir: sou brasileira não-branca.

Angeli e o Dia da Consciência Negra: dispensa comentários
Bom, para além de todas as provocações, evidentemente, não se trata apenas de como nos vemos, mas talvez muito mais de como os outros nos vêem. Nos dias mesmo que eu estava escrevendo este longo texto, uma amiga comentou que ia à delegacia fazer um B.O. contra o prédio em que ela mora na Vila Mariana, porque era a segunda vez que barravam amigos negros dela na portaria. Ela comentou comigo sobre a primeira vez, em que o amigo negro foi chamado de “moreno”, sendo solicitado a ela que fosse encontrá-lo na portaria (o porteiro achou que o moço era entregador!). Na segunda vez, a amiga negra foi barrada na portaria e perguntado a ela “onde está seu crachá?”. Como assim crachá?  Nunca ouvi dizer que imediatamente ao chegar em um prédio para visitar um amigo você dispõe de um crachá. Talvez devêssemos criar um com alguns dizeres bem malcriados direcionados a pessoas e atitudes racistas como essas.

Minha amiga desabafou, sua amiga sentiu-se profundamente humilhada, mas felizmente ambas tiveram forças para denunciar esse racismo absurdo que ainda acontece todos os dias no nosso Brasil “democraticamente racial”.


Sites consultados:

http://ultimosegundo.ig.com.br/
http://diariodonordeste.globo.com
http://www.folha.uol.com.br
http://www.d24am.com
http://bulevoador.haaan.com
http://nacaomestica.org/blog4/
http://www.bahianoticias.com.br/
http://prosamagica.blogspot.com
http://aruandamundi.ning.com/
http://www.jornaldaimprensa.com.br
http://lidebrasil.com.br

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O segundo turno das eleições 2010 para Presidente: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa


Imagem extraída de http://www.conversaafiada.com/
Sala cheia de alunos de pós-graduação em educação. Meu local de trabalho. A poucos dias da eleição a discussão, evidentemente, versa sobre o segundo turno para presidente.

Em meio às declarações indignadas de várias professoras que atuam na rede pública de ensino, inconformadas com o fato de ainda haver professores que votam PSDB - apesar do tratamento ofensivamente sucateante e abandonante dado à educação pelo governo estadual, em São Paulo nas mãos do PSDB há 16 anos e agora com direito à prorrogação - uma das pós-graduandas, professora da rede particular, declara que vai votar em Serra porque não quer que o PT “ganhe a eleição de lavada”.

Talvez pelo lugar conquistado social e academicamente, talvez por certa expectativa de discernimento e profundidade no debate político que esperamos dos profissionais da educação, o fato é que me surpreendeu ainda mais ouvir essa professora afirmar que seu voto seria para Serra não por gostar do PSDB, partido que não a agrada também, mas por não gostar do PT.

Ora, apesar de haver ainda professores que inexplicavelmente votam em Serra, o território da educação pública seguramente não é o mais favorável à defesa do governo tucano, se é que há algum que o seja. Por conta disso, não preciso dizer que as manifestações indignadas se encorparam e, numa investida conjunta pró-Dilma, tentamos demonstrar a inconsistência política desse discurso, sugerindo a essa professora que, nesse caso, votar nulo seria o mínimo para demonstrar coerência.

Pois bem, desde a semana passada, é possível notar aqui pelas bandas da Educação um clima de investida mais acentuada por parte de todos os que não querem o PSDB e Serra à frente da presidência. Logo no início da semana encontrei uma colega com adesivos de Dilma que, enquanto dividia alguns comigo, afirmava sobre a necessidade de que fôssemos mais incisivos ao demonstrar nossa opção no segundo turno porque, segundo ela, “estamos muito quietos” e talvez, devido a isso, percamos terreno para os que se dizem do bem.

Em encontro no final de semana com duas grandes amigas, também professoras, para uma sessão do uruguaio Gigante e do nacional Pro dia nascer feliz, também não faltou o momento segundo turno das eleições, momento em que uma delas comentou sobre um colega que tinha colocado como meta ganhar 5 votos por dia para Dilma.

Sem dúvida, tal meta exige muito esforço e energia, mas talvez não seja assim tão mais trabalhoso do que discutir e problematizar com alunos e colegas professores em busca de um debate mais orgânico sobre as relações entre política, economia e sociedade na história brasileira, tarefa de que elas têm se incumbido diariamente em sua profissionalidade.

Eu mesma tenho me surpreendido em inúmeros momentos incentivando amigos a não deixarem de votar com vistas a evitarmos perder valiosos votos nessa etapa final das eleições.

Usando um termo bastante apropriado ao momento, eu diria que, de maneira relativamente ampla, esse fervor sobre Dilma ser a melhor opção para o segundo turno surge menos de uma certeza: querer Dilma Presidente e mais de algo que não se tem dúvida: não querer Serra Presidente.

De fato, parece consenso que chegamos em um momento político no qual é necessário deixar de lado - por ora, é importante ressaltar - discordâncias, críticas e reservas ao PT e à Dilma, com o objetivo de unir forças para algo maior: não eleger Serra para presidente juntamente com o projeto PSDBista de governo bastante neoliberal e conservador, embora maquiado e travestido de socialmente justo, progressista e do bem.

Nesse sentido, é interessante observar a maneira como a opção por Dilma foi se construindo e se delineando ao longo dessas eleições. Pois bem, ainda que o PT não seja mais tão representativo de uma opção político-ideológica de esquerda como foi até alguns anos, há um entendimento entre diferentes grupos de que os interesses dos cidadãos estarão melhor representados com Dilma frente à disputa com o PSBD. Há consenso de que não se quer o PSDB governando o Brasil.

Por outro lado, observe-se como é diferente o movimento que aglutina os grupos que votam Dilma e Serra, grupos estes que poderíamos entender como esquerda e direita, ou pelo menos mais à esquerda e menos à esquerda.

Enquanto os que não querem Serra Presidente - por algumas razões citadas aqui, dentre tantas outras - juntam forças para tentar eleger Dilma e, independente das divergências entre si, com o PT e com Dilma, formam um coletivo pró-Dilma, muitos dos eleitores de Serra não formam um coletivo pró-Serra mas um coletivo anti-PT. São grupos que votam Serra menos por acreditarem no projeto político do PSDB e mais por não quererem o PT governando.

Talvez a seus olhos de leitor atento essas duas perspectivas de escolha soem idênticas, porque ambas estão focadas na não escolha do candidato concorrente. Contudo, é interessante observar que muitas pessoas que se utilizam do discurso “PT e PSDB são a mesma coisa”, curiosamente, vão votar no PSDB. Ora, se são a mesma coisa tanto faz votar em um quanto em outro. Equívoco! Essa lógica não funciona numa eleição, visto que votar em um dos candidatos significa fazer uma escolha, portanto, a única forma coerente de demonstrar que se considera os dois partidos a mesma coisa é votar nulo. Aliás, para quem realmente acha que PT e PSDB são a mesma coisa seria bastante digno e decente optar pelo voto nulo e deixar a decisão da eleição para quem acha que há diferença entre os dois partidos.

O fato é que ainda não vi ninguém que vai votar Dilma defender que PT e PSDB são a mesma coisa, ainda que com críticas e divergências ao PT.

Talvez seja por isso que, enquanto a cada dia mais e mais pessoas expõem acintosamente adesivos de Dilma no carro, na bolsa, na camiseta, no capacete, na moto etc., buscando visibilizar com veemência sua opção - outro dia vi um carro que tinha adesivos grandes de Dilma em todos os vidros e ainda uma bandeirinha! - os eleitores de Serra restringem-se, pelo menos aqui na Educação, a uma opção silenciosa, que se exime do debate político de idéias limitando-se ou a provocar os eleitores de Dilma e, especialmente, os militantes petistas, ou a expressar sua opção anti-PT.

Manifestação de professores em greve. São Paulo. 2010.
Quanto a muitos que votam conscientemente em Dilma, finalizo justificando essa escolha com uma frase de uma educadora muito querida que trabalha comigo e que expressa bem a diferença que representa optar por um ou outro candidato nesse segundo turno. Disse ela “o Serra a gente vence nas urnas, a Dilma a gente vence nas ruas”.

Considerando-se a forma como Serra prefeito e governador de São Paulo tratou as reivindicações e manifestações dos professores da rede pública, com polícia armada e impedimento de passagem até de professores que precisavam de socorro e que tinham sido feridos pela própria PM, é de se esperar que não seja possível qualquer tipo de diálogo quanto a divergências e encaminhamentos para a política nacional, o que, felizmente, não tem se delineado da mesma forma nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Nesse sentido, não dá mesmo para falar que PSDB e PT são a mesma coisa. De fato, é preciso ponderar que, no caso de PT e PSDB, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

2010: O pós-greve e nós, os sedentos por transformação - Parte Final

Bom, ainda que a estrutura do texto completo esteja um tanto extensa e amealhada de subtextos, se você chegou até aqui, sugiro que tenha um pouco mais de paciência porque, mesmo sem o rigor acadêmico ou a “enxutez” tão conveniente aos escritos para a internet, talvez um pouco dessa prolixidade seja necessária para arredondar minimamente o que está sendo longamente exposto neste ensaio de reflexão.

Pois bem, estava eu dizendo que após a greve de 2007 eu tinha em mente não participar de outra greve.


Funcionários e estudantes em frente à reitoria da USP.
Contudo, neste ano tivemos greve novamente nas estaduais paulistas e a razão desta vez, a meu ver, era muito mais política que salarial. Não que a luta por salário não seja política, além de justa e necessária, mas do meu ponto de vista a discussão sobre a isonomia salarial entre docentes e funcionários ultrapassa a questão salarial em si: trata-se, sobretudo, de uma concepção de universidade, porque traz para o debate o reconhecimento de que o trabalho dos funcionários técnico-administrativos é tão importante para a universidade quanto o trabalho docente.


Nesse sentido, considero que a valorização, por igual, do trabalho de funcionários e docentes na forma de reajuste salarial foi conquistada em um momento em que, embora com naturezas distintas, tanto um quanto outro foram considerados importantes para a constituição da universidade.

Nesse contexto, lá fomos nós novamente, re-experienciar a sensação de coletivo capaz de transformar.


Mas o que me moveu a essa longa reflexão foi a reedição da vivência do que parece ser quase uma máxima que dá a tônica a todo movimento grevista: conquistas ficam sempre aquém das propostas mais profundas de transformação. Além disso, qualquer proposta que tenha como pressuposto a continuidade da discussão e o envolvimento dos sedentos por mudanças jamais sobreviveu organicamente ao movimento.


O fato é que, apesar de vivermos uma insatisfação cotidiana com a maior parte dos espaços dos quais fazemos parte e com as relações que interferem em nossa vida, ser um indivíduo ativo para a transformação do que nos incomoda é algo que parece não aprazer muito o sujeito contemporâneo médio.


O movimento grevista parece sacudir essa insatisfação – vivida diariamente, é importante que se diga, mas talvez adormecida no dia-a-dia muito mais acadêmico que questionador do mundo da universidade. De certa forma, não é difícil imaginar que o universo uspiano, apesar de pretensamente mobilizador e transformante, não favorece um cotidiano diferenciado politicamente daquele coberto das limitações vividas em qualquer outro espaço social.

A bem da verdade, ainda que nossa tradicional insatisfação seja sacudida durante o movimento grevista dando lugar a certo afã por mudanças drásticas e urgentes, esse desejo voraz logo perde sua força no pós-greve, à medida que vamos voltando a nossa rotina e ao nosso cotidiano tão ainda cheio de insatisfações mas, ao mesmo tempo, tão apropriado já as nossas necessidades diárias de indivíduos contemporâneos acomodados.


Funcionários votam em assembléia pelo fim da greve.
Foi assim que a greve terminou aqui na Faculdade de Educação, com nosso grupo unido e tecnicamente envolvido com a materialização daquela antiga proposta, que já comentei neste ensaio de reflexão, de que para que ocorram mudanças seria necessário estimular a discussão e o debate, na perspectiva de que uma transformação consistente começa no cotidiano das relações, no micro- espaço político de convivência.

Pois bem, é preciso primeiro dizer que num contexto de pós-greve, para que uma proposta seja organizada - leia-se: chegue ao papel - é necessário muito mais que uma daquelas falas calorosas e envolventes tão típicas do movimento. Envolvidos já em seu cotidiano de trabalho e de vida, até organizar uma reunião para que as pessoas possam conversar torna-se bastante trabalhoso. Assim, conversa-se e discute-se por email, mas as respostas são tão poucas e esparsas que geram um sentimento que beira a solidão, evidenciando o esvaziamento daquele comprometimento também tão típico aos militantes durante o movimento grevista.


Na tentativa de que todo aquele furor coletivo e engajado não se esvaia completamente você envia mais mensagens eletrônicas, lembra o grupo das tarefas necessárias para que a coisa aconteça, cutuca um pouco com seu pessimismo chamando aqueles com brios mais sensíveis a críticas e sente o peso dos mais e mais dias que se passam até outro pequeno passo ser dado.


O fato de haver tanta demora não chega a ser um problema, afinal, transformações tem que estar num contexto processual e, além do mais, no pós-greve há muito que se fazer na volta ao trabalho - caso não haja, às vezes trata-se de uma questão de segurança mostrar-se bastante ocupado para evitar pensamentos equivocados de que você não é tão necessário à universidade. Além disso, não é incomum a sensação de estar em dívida com o trabalho ou com os olhares avaliativos dos colegas num pós-greve, então, mesmo para aqueles grevistas convictos muitas vezes torna-se difícil envolver-se em mobilizações de qualquer tipo após a volta ao trabalho, é necessário fugir ao estereótipo de alguém que não está se dedicando a seus afazeres tal como manda a cartilha do que é ser um bom e imprescindível funcionário.


Portanto, a demora para a organização das tais propostas não é o problema central, a questão é perceber essa desmobilização letal, que vai lentamente tomando conta até dos militantes mais engajados, daqueles que contribuíram significativamente para fortalecer e enriquecer o movimento.


Penso que, se na Faculdade de Educação demoramos quase 2 meses para organizar uma proposta no papel, para conseguir fazê-la sair do papel rumo a uma efetiva transformação (considerando-se as baixas de participantes ao longo desse processo) é possível que sejam dispensados aí mais alguns anos, tal como iniciei minha reflexão, observando a referência das propostas feitas em 2007 - e não concretizadas, é bom lembrar.


Talvez eu esteja sendo injusta com meus dois companheiros que ainda estão envolvidos de forma ativa nesse processo de pós-greve transformador, confesso que eles são a única razão que me faz não finalizar esse ensaio sem esperança alguma. Mas minha questão é que não se faz biju sem farinha e não tenho certeza sobre o quanto de fôlego teremos para trabalhar por um coletivo que, aparentemente, não quer transformar o espaço a seu redor e talvez nem tenha interesse em ser um coletivo.


Infelizmente, parece que com o último suspirar do movimento grevista também suspiramos de alívio por poder voltar ao nosso dia-a-dia em uma universidade que não é a que queremos, mas que é a possível nesse sistema que nos acolhe, nos acomoda e nos torna acomodados.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Nós e a Greve – Parte II: 2007

Passeata na Avenida Paulista.
Depois da greve de 2007 na USP eu tinha pensado em não participar de outra greve novamente, porque fiquei com a sensação de que o desgaste não compensa as poucas conquistas que advém do movimento.

Parênteses: não quero dizer com isso que a greve não seja válida ou necessária, pelo contrário, acredito  que   sem  ela   muito   do   que   foi   conquistado  em relação a salários ou direitos trabalhistas estaria engavetado sem talvez sequer ter sido discutido.

A questão é que, na maior parte dos casos, algumas conquistas tornam-se insignificantes quando comparadas a todas as propostas de mudança que surgem na discussão política durante o momento de greve.

Ora, essa talvez seja a maior conquista coletiva do movimento, porque é durante a greve que acontecem discussões que permitem uma politização quase inviabilizada pelo cotidiano de trabalho. Durante a greve também é possível conhecer seus colegas de trabalho em outro contexto e partilhar, inclusive com divergências, suas opiniões políticas.

A greve é, sobretudo, um momento de grande aprendizado político e de cidadania.

Quem passa pela universidade e se exime de participar das discussões que permeiam uma greve, quem nunca foi a uma manifestação, nunca participou de uma assembléia, pode estar perdendo uma grande oportunidade de vivenciar por dentro um movimento político, inclusive para fazer críticas com conhecimento de causa.

Para além das discussões sobre salário e condições de trabalho, permanência estudantil e outras reivindicações, por assim dizer, mais pontuais, durante a greve surgem discussões de âmbito mais amplo que, dentre outras, questionam as instâncias (que deveriam ser) democráticas na universidade, as formas de relação institucional, além de outras, como por exemplo a relação entre universidade e sociedade.

Assembléia de estudantes.


Pois bem, na greve de 2007 na Universidade de São Paulo, gestão da Profa. Suely Villela, quando a reitoria havia sido ocupada por estudantes algumas semanas antes de deflagrada a greve de funcionários, a universidade virou um palco político no qual foram   travadas   discussões profundas sobre   o  papel  da
universidade, sua democratização e por aí afora.

Envoltos nesse clima que inspirava a mudança, lembro que houve uma plenária na Faculdade de Educação que congregou funcionários, estudantes e docentes para discutir questões internas à faculdade. Esse debate trouxe à tona a necessidade de espaços democráticos que viabilizassem uma discussão contínua em que todos os segmentos tivessem participação; um docente que era chefe de um departamento chegou a fazer um mea culpa dizendo que ele próprio, devido ao cotidiano intenso de trabalho, não conseguia tempo para propor e efetivar espaços concretos que permitissem a participação e discussão coletivas.

Evidentemente, todos concordaram com a necessidade de aproximação entre docentes, funcionários e professores através do diálogo, da partilha das necessidades de cada um no espaço de trabalho e alguém lembrou a dificuldade de que esse tipo de discussão e decisão sobreviva ao fim da greve muito em função do cotidiano de trabalho. Por conta disso, ali se firmou um acordo de que seriam garantidas, de alguma forma, a continuidade e aprofundamento dessas discussões para que as tais das mudanças fossem pensadas e implementadas e tudo o mais.

Bem, passados mais de 3 anos nada aconteceu nesse sentido. E eu, como pessimista que sou, fiquei me questionando se mesmo vivendo um momento político tão forte como o instaurado em 2007 - com uma greve de funcionários e a ocupação da reitoria que permitiram uma militância consciente e segura de sua força para reivindicar direitos – nada mudou profundamente na estrutura da universidade, ou pelo menos nada mudou em um local onde sei que isso foi pauta de discussão com acordo e tudo, que situação política tornará isso será possível? Que movimento trará condições favoráveis a essas mudanças mais consistentes nas relações institucionais, no cotidiano, na dinâmica da universidade?

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Nós e a Greve – Parte I: 2010

Ato na Rua Itapeva.
Passado em torno de um mês e meio do fim da greve de funcionários nas universidades estaduais paulistas, tudo volta ao normal na Universidade de São Paulo: bandejões, circulares, atendimento ao público em geral e outras atividades diretamente ligadas ao trabalho dos funcionários.

Também volta ao normal especialmente o espírito dos que como nós – sedentos por mudanças – queríamos contribuir para a transformação da universidade em um espaço mais democrático e, quiçá, intervir no debate de problemas que envolvem a sociedade brasileira e até questionar e denunciar questões que extrapolam nossas fronteiras.

A participação ativa e diária no movimento, nas discussões sobre a universidade, nas assembléias calorosas em que os companheiros do comando de greve sempre exaltam a força e a importância do movimento com palavras de ordem que nos fazem acreditar que é realmente possível modificar a estrutura tradicional e enraizada da burocracia universitária: esse dia-a-dia mergulhado na militância nos torna ativistas, lutadores, ‘revolucionários’ e otimistas quanto às possibilidades de transformação da universidade e, quem sabe, até de nós mesmos enquanto sujeitos nessa luta. Isso porque nos momentos mais intensos chegamos a acreditar que seremos capazes de encampar uma luta orgânica e consistente a ponto de conquistar a tão sonhada universidade “democrática e de qualidade para todos“.

Pois bem, talvez por conta da imersão na discussão política, talvez pela sensação de um coletivo comum e organizado, o fato é que, durante a greve, sentimo-nos mobilizados para enfrentar os problemas de organização da universidade, tais como a forma como as relações se dão, o pouco diálogo entre os setores, o cotidiano árido de discussões para melhorias que façam sentido, a permanência de questões que se arrastam há anos, a falta de espaços democráticos que sejam escuta e encaminhamento de propostas efetivas de transformação.

Contudo, sabedores de que o movimento está limitado a um determinado período e que essa transformação, por assim dizer, mais substancial, carece de um tempo maior de debate e aprofundamento e, especialmente, de envolvimento mais efetivo de todos os segmentos, surge a proposta para a continuidade da discussão dessas questões no pós-greve.

Na FE, por exemplo, a partir desse debate, neste ano a ideia foi intervir para um espaço cotidiano de trabalho mais politizado, no qual todas as categorias – funcionários, docentes e alunos – pudéssemos discutir as relações institucionais numa perspectiva mais atuante e, assim, preparar o território político para as representações nas diferentes instâncias da universidade.