Fazenda Pedra Negra

Vista da Casa Grande. Fazenda Pedra Negra. Foto: Walquíria Molina

Quando comecei a contar algumas das "Mil e uma histórias" nesta seção, "Para quem gosta de causos", comentei com vocês o quanto gosto de conversar e ouvir histórias, causos e afins e o meu intuito de partilhar um pouco isso aqui no blog.

Só não imaginava o quanto teria de "material", por assim dizer, com a minha visita à Fazenda Pedra Negra, em Três Pontas, Minas Gerais.

Ainda nem sei direito como começar minha escrita sobre o que vivi e ouvi lá naquele lugar encantador tanto pela sua história em si quanto por suas belezas mas acho que, ainda mais, pela forma como tudo acontece ali, pela maneira como somos recebidos e tratados pela Isaura e Gustavo - proprietários tão queridos quanto a Pedra Negra e que nos tratam não como hóspedes, mas como convidados à sua casa.

Cheguei à Fazenda meio sem saber como as coisas funcionavam, muito inspirada pelo encanto de uma amiga que mora em uma das casinhas de colonos e outra que tinha ido já indicada pela primeira. Fui para passar o réveillon e dois dias depois já tinha decidido que ficaria mais uma semana e quando foi chegando o dia de ir embora senti que se pudesse ficaria muitos dias mais.

Desde o dia que cheguei fui ouvindo todos os dias histórias de todos os tipos, causos, coisas que são contadas por quem vive na Fazenda sobre si e sobre outros e sobre o que ouviram, e mesmo nós, hóspedes e moradores, parece que nos envolvemos de tal forma nesse modo de se relacionar na Pedra Negra que, sem perceber e sem ser nosso expediente do dia-a-dia, logo estamos ali, em volta de uma mesa no café, no almoço ou no jantar, no alpendre, numa varanda, numa escada  ou em qualquer lugar onde seja possível um pequeno ajuntamento de pessoas, a contar e ouvir histórias as mais curiosas, interessantes, tristes, profundas, de todas as modalidades que se possa pensar.

No começo achei que ia conseguir dar conta de registrar tudo o que eu estava ouvindo, mas fui querendo muito mais ouvir que registrar, envolvida que fui ficando com esse clima em que todo mundo vai partilhando uma história que lembra outra história que lembra outra história numa sucessão infinita e deliciosa de histórias que se misturam.

Cheguei a ficar com receio de esquecer as histórias, os detalhes, porque são tantas, tamanhas e de tanta riqueza que sabia que não daria conta. De fato, só a vivência na Fazenda Pedra Negra, ouvindo Isauras, Gustavos, Walquírias, Genovevas, Cléberes, Lourenços, Graças, Têmis, Vânias e tantos outros contados por eles e através deles fará possível compreender essa riqueza.

Eu aqui, contarei por mim um pouco do que ouvi e peço perdão a todos que me contaram porque sei que nunca conseguirei reproduzir a beleza de tudo o que ouvi e senti, mas peço licença para tentar dividir um pouco desse sentimento porque foi tão bom que não consigo guardar em mim a grandeza de todas essas histórias.

Peço licença também porque minha linguagem é outra e nunca terá as peculiaridades e a beleza da linguagem falada ali, com todas aquelas palavras, ditos e verbos próprios de quem nasceu em Três Pontas, em Varginha e na Pedra Negra. Eu que sou caipira urbana não dou conta de guardar a riqueza de tantas palavras gestadas em uma cultura de vidas inteiras e por mim ouvidas em 12 dias apenas.

Mas o que me move é esse sentimento de beleza das próprias histórias, a vontade de dividir isso de tanta ternura que sinto pela Fazenda e por tudo o que vivi ali e que espero conseguir partilhar um tiquinho com vocês.



*Mais sobre a Pedra Negra neste Blog em Cangando uns grilos

________________________

Milton Nascimento

Imagem Divulgação: Milton Nascimento retoma raízes mineiras
e reúne músicos jovens em novo disco
Há tempos tento vir me prazerar nessa página que tanto gosto e quando no show do Milton aqui em São Paulo (sim, eu fui!), fiquei inspirada a escrever algumas pequenas histórias desse magnífico cantor e incrível pessoa, todas advindas da relação dele com a Fazenda Pedra Negra.

Para quem não sabe, Bituca, como é chamado naquelas bandas, mora em Três Pontas, numa linda casinha na praça central, e é conhecido por incentivar jovens músicos da cidade e da região. Aliás, seu álbum mais recente, "E a gente sonhando" que faço questão de ser meu inspirador enquanto escrevo estas linhas - foi gravado em parceria com compositores e músicos de Três Pontas, que também subiram ao palco com ele no  sábado, num show, a meu ver, maravilhoso!, tanto pela beleza da música de Milton, simples e profunda ao mesmo tempo, quanto pela jovialidade vigorosa do talento dos moços e moças que honraram partilhar o palco com um mestre como ele.

Pois bem, na minha curta estadia na Pedra Negra, a querida Isaura contou sobre tempos sombrios, tristes e indignantes, em que o cantor não era aceito nos clubes e bares requintados da cidade devido ao racismo que prevalecia na época. Infelizmente, experiências como a de Milton foram partilhadas por inúmeros artistas negros ao longo da história. É muita conhecida, por exemplo, a história de Louis Armstrong, também impedido de entrar em hotéis e casas de banho nos Estados Unidos.

O fato é que quando Milton ganhou o 2º lugar no II Festival Internacional da Canção, em 1967, com a música Travessia, chegou em Três Pontas aclamado por um cortejo.

Isaura conta que foi nesse dia que ele respondeu, pacificamente, ao tratamento recebido na cidade até então: o cortejo, que era esperado em Três Pontas, entrou antes na Fazenda Pedra Negra e dali foi direto a outras paragens em que o cantor sempre fora valorizado e, especialmente, tratado com dignidade e respeito.

Felizmente, os tempos são outros e Bituca conquistou em Três Pontas, há muito, o reconhecimento e o carinho que, merecidamente, lhe é devido.

Certo dia, ele apareceu na Pedra Negra para visitar um amigo e decidiu passar a noite por lá.

No mesmo dia, apareceu também na Fazenda um grupo de romeiros pedindo pouso e Isaura, que quem conhece bem pode imaginar a prontitude, arrumou instalações para o grupo passar a noite acomodado no celeiro.

É preciso que o querido leitor saiba que a Pedra Negra é sempre parada de romeiros que vão à Aparecida e, por isso, com certa constância, pode-se encontrar grupos de cristãos devotados à Nossa Senhora de passagem por lá.

Mas aquele dia foi um desses que anunciam algo especial, talvez porque Milton seja especial, talvez porque aqueles romeiros fossem especiais.

O fato é que, na manhã seguinte, Isaura serviu o café da manhã aos romeiros, que pediram permissão para fazerem sua oração à Nossa Senhora Aparecida antes de seguirem viagem. Foi quando Milton chegou e pediu para acompanhar a oração.

Foi assim que, enquanto o grupo fazia sua oração sincera e cheia de fé, Milton fez o acompanhamento tocando "Ave-Maria" com a profundidade e a força que a situação reivindicava.

Considero, contudo, estar além de minhas possibilidades relatar aqui a emoção partilhada pelos que viveram aquele momento. Eu mesma tive dificuldades de visualizar a beleza da cena ao trazê-la para a escrita, mas depois de ver e ouvir Milton ao vivo, sinto que quem já teve oportunidade de se comover com sua  música e com a beleza de uma oração pura consegue transpor as limitações deste texto e imaginar a emoção dos romeiros, de todos os privilegiados presentes àquele café da manhã na Pedra Negra, do próprio Milton e quiçá mesmo dos anjos e de Nossa Senhora, feliz pela beleza da homenagem recebida.


Mais sobre a Pedra Negra neste Blog em Cangando uns grilos



20 de junho de 2011.

____________


Histórias de escravos

Desde que cheguei à Fazenda fiquei escarafunchando para tentar descobrir sobre a história do lugar e de como Seu Domingos, o avô da Isaura, tinha chegado àquelas terras.

Uma das coisas que me interessava eram os escravos e descobri que na Pedra Negra mesmo, à época do Seu Domingos, não houve escravos na Fazenda.

Mas na região houve muitos e com certeza há infinitas histórias tristes e trágicas em suas vidas, dentre as quais relato duas.

A primeira é a história de alguns escravos que descobriram que seus senhores tinham feito um testamento no qual deixavam seus bens destinados à alforria deles. Movidos pelo forte sentimento de liberdade, os escravos colocaram vidro moído na comida dos senhores, que morreram sem saber a razão. Os escravos foram descobertos, mas  já tinham partido há tempos e, assim, não se tornaram prisioneiros outra vez.

A segunda é a história de uma certa escrava e de um certo juiz. A escrava colocou fogo no filho recém-nascido para que o menino não se tornasse escravo como ela.  O maior crime não foi exatamente a morte da criança, mas o prejuízo do senhor pela perda de um bem, motivo pelo qual a escrava foi condenada a levar um tanto grande de chibatadas. O nosso juiz teria que contar uma a uma as chibatadas, obrigação que ele se recusou a cumprir, sendo deposto de seu cargo. Conta-se que ele morreu muito pobre por causa disso mas nada se sabe sobre como morreu essa mãe-escrava sem seu filho.


Janeiro de 2011.

____________