segunda-feira, 21 de março de 2011

Sandy e Devassa: reflexão sobre estereótipos e papéis sociais feminininos na sociedade atual

Imagem: www.youtube.com/user/BemDevassa
Com certeza não é novidade para ninguém a nova campanha publicitária da cerveja Devassa tendo como garota propaganda a ex “Sandy e Júnior”, agora Sandy somente.

Lembro que quando duas amigas me “apresentaram” essa cerveja num boteco da vida achei uma sacada interessante, afinal, o que mais pensamos quando falamos em devassa senão em uma sexualidade liberta e libertina e em sexo picante, apimentado e deliciosamente quente? Além disso, diferentemente de bebida e direção, bebida e sexo são coisas muito boas de se misturar.

Curiosamente, embora alguns dos significados sensuais encontrados no Dicionário Aurélio para Devassa sejam substantivos tais como desregrado, libidinoso e corrompido, o que a cerveja associa a ser devassa é, por assim dizer, muito mais pueril e inocente, expresso no lado “desencanado, descontraído e desinibido”, sendo, ao que tudo indica, a exploração do contraponto entre esse lado  mais ‘comportado’ e o lado devasso a principal jogada de marketing da atual campanha da cerveja.

Pois bem, há alguns dias ouvi comentários indignados de algumas pessoas próximas, dizendo que o comercial não convencia porque a “Sandy não tem nada de devassa”, que ela “nem bebe cerveja” e que o short que usa na propaganda “vai até aqui” - uma amiga até afirmou, apontando para uma parte da coxa que indica um comprimento meio careta para quem se pretende mesmo devassa.

Até aí era uma conversa séria e tranqüila, entre amigos e amigas, mas depois eu soube que a outrora mocinha - que agora intenta se mostrar uma mulher devassa - acabou virando motivo de chacota na internet e, ainda que muitos fãs a defendam veementemente, não há como não saltar aos olhos comentários como o do jornalista José Simão, colunista da Folha UOL e apresentador do Jornal da Band, que disse em seu programa de rádio na Band FM que “até a Mônica do Maurício de Souza é mais devassa que a Sandy”.

Como estamos em março, mês dedicado internacionalmente à mulher, pensei que talvez fosse interessante discutir essa questão para além do mimimi publicitário e fofoquístico, examinando um pouco os estereótipos a que as mulheres muitas vezes são submetidas e os inúmeros papéis sociais de que teríamos que tentar dar conta na atual sociedade.

Ora, não é preciso ser um crítico voraz da Sandy para observar que a moça não faz bem seu papel de devassa. Não fosse assim, seria ela própria a rebolar e requebrar de biquíni dançando a clássica “Conga  Conga Conga” da cantora Gretchen, música apropriada a movimentos de quadril e de bunda, que combinam muito com a imagem de mulheres soltas como a Gretchen, mas que parecem não se adequar bem a nossa comportada Sandy.

Entretanto, devemos admitir que a idéia da Devassa foi boa, invocando a fantasia de dançarinas com pernas abertas sobre uma cadeira, imagem sensual que, sem dúvida, está presente no imaginário masculino e feminino. Porém, tenho que concordar com minha amiga, porque mesmo havendo certa sensualidade, as roupas usadas pela Sandy nesse comercial são bastante comportadas - talvez adequadas e convenientes aos padrões sandyanos de ser, mas pouco convincentes para o imaginário do que é realmente devasso.

Mas, então, por que investir em algo tão pouco consistente? Será que a polêmica em torno da pouca ou nenhuma devassidão da Sandy venderia mais cerveja do que a sensualíssima Paris Hilton, com seus lábios carnudos, cabelos loiros volumosos, pernas roliças e desnudas e um quadril espontaneamente - e estonteantemente rebolante?

Considero que a grande sacada talvez esteja aí: exatamente em cutucar a fantasia que muitos rapazes, hoje homens, talvez tivessem - e ainda tenham - de imaginar como seria se a Sandy REALMENTE fosse devassa. Sim, porque, verdade seja dita, ela encantou uma geração inteira com sua beleza e autêntico comportamento pueril de “boa moça”. Como essa geração tornou-se adulta não é tão difícil supor que talvez boa parte ainda curta a Sandy, agora como mulher, e imaginar que ela possa não ser tão comportada como parece pode tornar a fantasia muito mais excitante.

Contudo, minha questão é pensar em qual seria o problema de ser comportada, de ser uma “boa moça”, de não ser uma devassa? Seria essa imagem prejudicial à carreira da Sandy em seu momento atual ou isso teria muito mais a ver com a mulher do que com a artista? Ela afirmou em entrevista que “todo artista quer exposição” mas, nesse caso, me intriga realmente o tipo de exposição que ocorre no que tange à representação do feminino.

Nesse sentido, não seria um contra-senso imaginar que parecer bem comportada socialmente é ruim se confrontado ao que representa ser devassa? Aparentemente, para os padrões sociais atuais, uma mulher considerada liberada sexualmente - óbvio que dentro de certos limites da sociedade machista - é muito mais interessante do que aquela tida como sexualmente convencional. No caso da Sandy, soma-se o fato de que talvez ela tenha se cansado de ser vista como a menina inocente e angelical, imagem da cantora adolescente que foi muito fortalecida pelo próprio comportamento dela, vista como “boa moça”.

O ponto sobre o qual acho interessante refletirmos é esse da pressão sofrida socialmente para estarmos dentro de determinados padrões e a dificuldade que, não raro, temos para exercer nossa identidade e sermos quem realmente somos de forma independente porque, muitas vezes, o alinhamento a padrões vigentes podem implicar uma maior aceitação social e até não termos “dores de cabeça” no trabalho, na vida familiar, nos círculos de amizades e mesmo com a auto-imagem.

Nesse sentido, fiquei ponderando sobre o quanto talvez essa moça sinta-se pressionada a mostrar para o seu público que não é mais menina, que se tornou uma mulher e que aquela imagem  pueril que tinha deve ser substituída pela de uma mulher adulta, com vida sexual e tudo o que isso implica. Contudo, em suas próprias declarações rescende o quanto isso está atrelado a um comportamento convencional, dentro de padrões tradicionais, quando diz, por exemplo, que “nem todo mundo consegue ver que cresci, e que sou uma mulher de 28 anos, casada”.

Para mim aí está o grande lance da questão: ser uma mulher casada, com uma vida socialmente comportada, que não se enquadra nos padrões sexuais de devassidão, também pode ser tão interessante e excitante quanto viver o lado devasso no sentido picante do imaginário do termo. O que me parece pouco excitante é tentar convencer o outro de algo que nem nós mesmos estamos convencidos plenamente. Na minha opinião, não há como negar que a Sandy se tornou uma mulher muito bonita e sexy, mas daí até sustentar uma imagem de devassa tem um caminho, a meu ver, desnecessário e pouco convincente.

Penso que nós, mulheres, temos cada vez mais que refletirmos sobre esse montante de estereótipos e papéis que a sociedade machista tenta nos impor a todo custo. Ao mesmo tempo em que somos cobradas para sermos boas esposas, boas donas-de-casa, profissionais competentes e excelentes mães, somos bombardeadas com os valores da ditadura da beleza e da perfeição corporal, que implicam basicamente sermos sexys e sensuais, sem celulite, sem cabelos brancos, magras, com peitos grandes, com bundas duras e empinadas, dentre outros exageros estéticos que circulam por aí.

Não quero dizer com isso, evidentemente, que não seja possível à mulher cuidar-se e sentir-se linda ao mesmo tempo em que agrega qualidades intelectuais e emocionais, além de papéis sociais como os de mãe, esposa, amante, profissional bem-sucedida etc., afinal, se há algo historicamente inerente à mulher é sua habilidade de conseguir dar conta de muitas coisas ao mesmo tempo. Contudo, essa condição é muito distinta da de ser pressionada a aceitar imposições para ter um corpo perfeito ou, como foi abordado aqui, indicando que tipo de mulher você deve ser, comportada ou devassa, independente do que VOCÊ QUER ser.

No caso da Sandy como potencial devassa, considero que não aceitar essa imposição seria admitir que o máximo que seu lado devassa tem é o que a própria campanha publicitária afirma, “um lado descolado, descontraído, divertido”, e que não há problema algum nisso, afinal, ela continuará uma mulher bonita, desejável e interessante porque toda mulher pode ser considerada e desejada para além de seu lado devassa.